A força, a arte, a manha, a fortaleza:
O tempo acaba a fama e a riqueza
O tempo o mesmo tempo de si chora:
O tempo busca e acaba onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer durezaMas não pode acabar minha tristeza
Enquanto não fizerdes vós, Senhora.”
— Luís de Camões
A estória de Adelina nascia de um grande mosaico colorido que fui formando ao longo dos anos. Isto não é conversa pra criança, era o que eu ouvia enquanto a porta ia avançando contra o meu nariz.
Dele tenho apenas o nome: João Ataíde era apenas um nome perdido nas bocas das tias. A foto pregada na parede da cama mostrava um homem, de média estatura, segurando um livro grosso com papéis saindo pelas páginas. A fotografia retratava um professor de escola primária do norte de Portugal.
Eu olhava do outro lado da cama o homem incomodado sob a luz do sol. Minha avó Magnólia dizia que o pai atravessara o oceano em busca de melhores dias em terras brasileiras, encontrara nas dunas de areia do Espírito Santo a brasileira de olhos azuis.
Os fatos que conheci ,depois vieram embaralhados. Sei que João e Adelina tiveram quatro filhos e que a moça da praia não fora o modelo de mãe e esposa que ele sonhara. Os portugueses que aqui aportaram, no fim do século XIX, eram dotados de tino comercial . Todos os Manuéis e Antônios de minha infância possuíam prósperas quitandas ou padarias. João Ataíde era um homem voltado para os livros; varava as madrugadas sob luz da lamparina; lia e anotava incessantemente. A esposa não passara das carteiras do grupo escolar e não se seduzia por livros com estórias transbordando dentro. Assim foi formando-se, pela erosão dos dias, um imenso buraco entre os dois. De um lado Adelina e seu cesto de peixes, do outro João e os poemas dos livros. Hoje, entendo porque as mulheres da família apontavam Adelina como o avesso do pano. Todas do álbum de fotografia tiveram muitos filhos e enfrentaram altivas os problemas, que entram pela porta com a filharada e pouco dinheiro. Todas permaneceram de pé, até o último ato.
Um dia, a moça da praia olhou o professor do outro lado da sala. Viu apenas um terno puído com um homem franzino. O som lusitano da voz já não lhe era canção ao vento. Sonhara com um português comerciante e uma mesa farta. Cortinas que voassem em rendas pela janela e mais que peixe miúdo e guandu sobre a mesa. Distribuiu os filhos entre os vizinhos, prendeu os cabelos numa trança bonita e bateu a porta. Neste ponto perdemos João Ataíde. Nunca perguntei às tias o que ele fez da vida. Voltou para o Porto? Chorou as tardes na praia? Continuou lendo Camões sob a luz da lamparina? Na verdade, perdemos João e Adelina. Ela só apareceu diante dos filhos muitos anos depois do fim da Segunda Guerra. Um dia Magnólia, a filha, abriu a porta da casa e lá estava um cesto vazio. Em pé, ao lado do cesto: uma senhora de olhos azuis.
Quando conheci Adelina, beirando os oitenta anos, já se chamava Dindinha, usava xale e arrastava um chinelo grande. Dizia meu nome com muitos “is” no meio e falava que eu devia ser professora. Ensinar a ler , dizia, é coisa de gente abençoada, gente de alma boa.
Nós olhávamos juntas o jovem avô da fotografia. Acho que ela pensava que aquele imenso buraco na sala poderia nunca ter crescido. Começamos a aprender pela dor e pelo que perdemos. O amor de João e Adelina não morreu, mudou-se para algum lugar neste universo imenso. Acredito, procurando na vastidão do céu pontilhado de estrelas, que um dia ela vai encontrá-lo no pátio da escola e estender-lhe um velho poema português. O rapaz ficará comovido com o interesse da jovem por literatura lusa e trocarão idéias afins. Aprendemos também pelo riso que vem junto com o que reconstruímos.
L.A
9ª Antologia dos AnJos de Prata- Contos e Crônicas, Editora All Print