domingo, 8 de março de 2009

CARVÃO EM FUNDO BRANCO- conto


estou procurando a cor, onde ela não vai


Nós, cumpre esclarecer, éramos algumas dezenas de meninos e meninas, filhos de carvoeiros, aos quais letras e números não haviam sido apresentados. Dividíamos os meses entre os secos e os que exageradamente nos mantinham em casa. O mundo entre o quintal e o outro lado do rio. Quando percebemos os movimentos de tijolos e madeiras, pressentimos que o que fosse ali erguido nos seria destinado. Mantivemo-nos em sentinela diária, num revezamento quase militar.
Quando por fim retiram os limites de proteção e vieram todas aquelas pessoas estranhas que ,escolhendo os verbos, nos disseram que a casa amarela, como um grande fruto entre as árvores, nos pertencia; sentimos desconfiança. Entramos pela primeira vez na escola em fila, as mesas estavam alinhadas e limpas. Ana passou a palma da mão sobre a que estava a sua frente, muitas vezes. Puxei-lhe a ponta do vestido com força. Caminhávamos pela sala em grupos, o chinelo não reconhecia o assoalho de madeira. Nos dias que antecederam o início letivo, nos dirigíamos à escola todas as manhãs. Sentados nos degraus do portão, como gatos que arqueando a coluna e deslizando o pêlo roçam as pernas, pedíamos a intimidade da posse. As portas mantinham-se fechadas.
No primeiro dia de aula, acordados saímos aos tropeços. Até então o desconhecido estava na outra margem do rio, agora o tínhamos ali a alguns passos de casa.Estávamos aquele emaranhado de curiosos no corredor, quando nos separaram. Do fundo da outra sala, onde foi colocada, podia buscá-la a todo o momento. Ela esticou os braços sobre a mesa e pousou o queixo entre eles. Acompanhava com os olhos as listras irregulares da madeira e o cheiro era-lhe pura correnteza. Não se abrira ao quadro negro, ao arranjo de flores sobre a mesa ou ao bordado do vestido. Seus olhos buscavam os riscos da madeira. Soou-me o alarme. Levantei-me rápido e caminhei à sala. Ana mantinha-se na mesma posição, toquei-lhe os ombros. Nada lhe disse e voltei ao meu lugar. Uma vez de volta tentei acompanhar o meu próprio desenho na madeira. Compreendi por que ela poderia ficar lá, dentro dele. A quantos de nós o risco chamara a atenção? Ana não tinha o caminho de volta.
Estamos separados do instante seguinte pelo desconhecido, e dele necessitamos. Nenhum de nós estava preparado para a caixa de lápis de cor. Nós que tínhamos as unhas sombreadas de carvão, uma folha em branco, e a pequena caixa era da criação o desafio. Dedicamo-nos ao que era até então impossível: flores, árvores, nuvens, e rios. Eles nasciam fartos e nítidos como se Deus nos compartilhasse o dom.
Lembrei-me de Ana. Em pé no meio da sala, procurei-a. Ela juntara todos os lápis na mão e num movimento único riscava a folha. Riscava com força, indo e vindo.
_ Alice, volta!
Não poderia. Lancei-me ao mar para ir buscá-la. Atravessei as duas portas e parei em pé diante dela. O conjunto de cores formava um ninho de serpentes coloridas e por breve instante quase me aliei a seu imenso abismo. Segurei-lhe o pulso.
Para nós, meninos ribeirinhos, os dias que se seguiram foram de descoberta, para Ana foram dias de cego em terra estranha. Não aceitávamos deixar os lápis na escola, ela os devolvia como sobrevivente que perde o alimento. De volta a casa punha a cartilha sobre o fogão e dirigia-se ao fundo do quintal. Parava frente à parede caiada como se encontrasse uma porta na parede branca. Com um pedaço de carvão riscava sem força um risco fino. As figuras flutuavam no branco em formas irregulares. Às vezes eu as identificava ou as via perderem-se em outras. Diariamente, após as aulas dirigia-se à parede no fundo da casa. Passamos a viver as tardes ali. Sentava-me à curta distância, sem interrompê-la. Penteava-lhe os cabelos, trocava-lhe o vestido com cuidado. Em suas pausas curtas dava-lhe alimento e água. Quando o sol incomodava abria sobre nossos ombros a sombrinha.Guardo daqueles dias esta fotografia aérea: uma menina segurando um guarda-sol, um banco de madeira, outra menina sob o guarda-sol riscando a carvão uma parede cada vez mais escura. Nunca permiti que esta parte da casa fosse pintada, com o tempo, para nós, era um grande pano escuro. Para Ana as figuras estavam lado a lado, com começo e fim. Só ela ainda via sob o carvão o fundo branco. Nos fins de tarde, ensaboava-lhe as mãos com força até sumir dos dedos o sombreado.

Nasci incumbida de guiar a manada na grande travessia do rio. Éramos nós duas na casa, da mãe restara apenas a fotografia desbotada na cristaleira da sala. Aprendemos cedo a usar o fogão e o forno. Meu pai não falava em casar-se de novo e nossa era aquela casa. Saía para o trabalho na carvoaria sob um céu cheio de estrelas, voltava, a passos tortos, com o barulho dos baldes rolando pelo chão de cimento. Caiava a casa após a estação de chuvas, mas a meu pedido, nunca a parede no fundo da cozinha. Em Outubro Ana desinteressou-se dos livros, passei a trazer-lhe escondidos alguns lápis de cor. Já não se interessava por eles também, usava ainda os pedaços de carvão na parede escura. Passei a acordá-la no meio da noite, para que tivesse sono pela manhã e eu pudesse ir à escola.
Um dia deparei-me com todas as nossas coisas amontoadas no catre no canto da sala. Ana calçava sapatos e meias e tinha o cabelo penteado muito diferente do jeito que eu cuidava-lhe. Não temi por mim, mas como tirar-lhe a casa, o fogão, a parede riscada? Pela primeira vez eu a vi muito maior que eu. Ela dava-me aquela obediência de presente para que eu não tivesse medo. Cruzei o portão, e fui perdendo a escola, o rio, a mata que corria atrás dele. Olhei para trás o tanto que me foi possível. Ela batia compassadamente o pé no assoalho do carro.
L.A

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