domingo, 20 de março de 2016

DO ARCO DA VELHA- CONTO





Hoje, lido um texto budista sobre a conexão com o Sagrado pela Compaixão, abro  inevitavelmente as janelas das lembranças que, como chuva fina, lavam os vitrais das memórias:

 Era um menino grande, ombros largos, maior que todos da nossa idade. A voz grave saía sempre descontrolada como os passos ligeiros e fortes no assoalho da sala. Eu sentava na segunda fila, atrás da cabeleira de cachos escuros, achava que o muro alto e largo era um bom esconderijo. Ele, às vezes, virava-se repentinamente e entregava sua mão fechada sobre a carteira de madeira e deixava ali o que parecia uma pedrinha enrolada em papel branco: uma pequena bala de pontas contorcidas.

Nascemos para obedecer e caber nas caixinhas que estão prontas para nos receber. Deodato não cabia em nenhuma delas. Tinha dificuldade em riscar as curvas das letras, com regras de alinhamentos e condutas. Quase sempre era retirado da sala por derrubar cadernos e livros e não controlar as palavras que trovejavam no silêncio da classe. Hoje sei que aquela escola não o merecia, não estava preparada para ele, que era muito maior que tudo. Um desafio à Pedagogia rudimentar de um grupo escolar das terras de Minas.

Não sei exatamente o que houve, só me lembro de vê-lo a caminho da Diretoria com as calças molhadas, arrastando a pasta que deixava lápis e papéis pelo corredor. Foi seu último dia de aula, passou a estudar em casa com a mãe.

Ah, a mãe. Ela representava para mim, um livro de fábulas, uma rainha que guardava com todas as chaves uma mina de baús cheios de diamantes. Talvez porque a apontassem como feiticeira e louca. Ela criava gatos, dezenas deles.  Gatos sem donos, tortos, caolhos, gatos de rua. Havia os gatos de olhos azuis e pelos marrons, arrasadores e lindos, que piscavam duplamente e pareciam sorrir. Eu tinha uma visão parcial, da janela do quarto, pois tinha o privilégio de ser vizinha deles. 

 Um dia, minha mãe  disse:

  - Vá à casa ao lado e deixe o bolo, mas não entre. Volte da porta. Esta era uma missão que eu não saberia nomear. Calcei os chinelos e corri até lá. Ninguém nunca entrava na casa, eles não recebiam visitas. As pessoas no máximo deixavam a caixa com os gatos na porta, nada mais. Não entreguei o bolo. Assim que a criada abriu a porta, entrei apressadamente. Passei pela sala, atravessei a cozinha e cheguei ao quintal. Os gatos estavam lá espalhados na grama. Preguiçosos e gordos: brancos, pardos, negros, majestosos. Veio-me um sentimento de indagação: Por que o mundo jogava fora aqueles seres felinos, macios e tão belos ? Eram de uma mansidão ímpar, como um cobertor de veludo em noite de inverno. A mulher baixinha e gorda olhava espantada a invasão. Estendeu-me um gato pequeno, cinza e trêmulo, que parecia fugido da guerra. Acomodei-o na roda da saia e olhei aquele reino em volta. Era o mito da caverna desvendado mais uma vez. Não havia a velha bruxa dos gatos de rua e seu filho doido. Não havia o cheiro podre de fezes, pulgas e vírus no ar. Apenas uma casa grande e antiga, um quintal enorme, um leve soprar das folhas no jardim e um cheiro adocicado de ternura e compaixão. O menino estava lá, lia um livro aberto sobre a mesa.  Veio até mim e pousou sua mão sobre a minha. Recebi de sua mão úmida o pequeno papel retorcido de bala.  Estivera guardado todo o tempo.

Passamos a manter uma convivência clandestina. Quando a guardiã dos gatos abria o arco duplo dos portões da entrada da casa, abria sem saber o caminho do paraíso. Era um oásis de fontes cristalinas na aridez dos meus oito anos. Aprendi pela compaixão um amor que não sabia existir. Aprendi que os gatos amam incondicionalmente e como dizem isso com os olhos, com o rabo, com a curva das costas. Que ligam um pequeno motor quando tocam-nos o rosto, e jogam-se aos nossos pés sem reservas, barriga pra cima, nos dizendo: - eu confio.

 Aprendi a confiar no amor com aqueles gatos. Que nem tudo em que as pessoas acreditam é real e que a verdade é uma caixa que tem que ser aberta. As histórias ouvidas nas tardes, com sequilhos e suco de tangerina, transferiram para mim parte do tesouro daquela família.

 Um dia, a vida mudou-nos para outra cidade e não houve despedidas. Soube que a mulher continuou a cuidar dos gatos da cidade, mas, para todos, era a Velha dos gatos e seu filho doido: os estranhos que moravam depois da ponte do rio.  Aprendi que há sempre um ser abandonado nas ruas que tem sede e mais fome do que imaginamos. Nós não imaginamos a dor dos cães e gatos perdidos, e como seus corações batem descompassados de susto e medo no escuro da noite. Na verdade, não temos tempo para pensar nisso. Só seguimos ordinariamente em frente.

luisa ataíde




O CASACO DE PUPA, um conto de Elena Ferrandiz




Toda manhã a menina metia-se no casaco de medos que 

usava desde pequenina e que foi crescendo com ela. E saía 

pelas ruas, coberta de MEDOS.

MEDO da solidão.



MEDO que não a queiram.

MEDO que a queiram.


MEDO de voar.


MEDO de afogar-se.

MEDO de sentir-se perdida.


MEDO que tudo mude.


MEDO que tudo continue igual. Igual, igual, igual, igual...


MEDO do futuro.


MEDO de repetir o passado. Passado.


MEDO de não avançar.


MEDO de dar um passo.

MEDO dos outros


MEDO dela mesma.


O casaco ficou pesado demais e ela já não conseguia ir a 


lugar nenhum. Então, encheu-se de coragem e resolveu 


livrar-se dele!


E voou. 


"Aquilo que a lagarta chama de fim do mundo, o resto do mundo chama de borboleta" -
LAO TSÉ

http://elenaferrandiz.blogspot.com.br/


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