Hoje, lido um texto budista sobre a conexão com o Sagrado
pela Compaixão, abro inevitavelmente as
janelas das lembranças que, como chuva fina, lavam os vitrais das memórias:
Era
um menino grande, ombros largos, maior que todos da nossa idade. A voz grave saía
sempre descontrolada como os passos ligeiros e fortes no assoalho da sala. Eu
sentava na segunda fila, atrás da cabeleira de cachos escuros, achava que o
muro alto e largo era um bom esconderijo. Ele, às vezes, virava-se repentinamente
e entregava sua mão fechada sobre a carteira de madeira e deixava ali o que
parecia uma pedrinha enrolada em papel branco: uma pequena bala de pontas
contorcidas.
Nascemos para obedecer e caber nas caixinhas que estão
prontas para nos receber. Deodato não cabia em nenhuma delas. Tinha dificuldade
em riscar as curvas das letras, com regras de alinhamentos e condutas. Quase
sempre era retirado da sala por derrubar cadernos e livros e não controlar as
palavras que trovejavam no silêncio da classe. Hoje sei que aquela escola não o
merecia, não estava preparada para ele, que era muito maior que tudo. Um
desafio à Pedagogia rudimentar de um grupo escolar das terras de Minas.
Não sei exatamente o que houve, só me lembro de vê-lo a
caminho da Diretoria com as calças molhadas, arrastando a pasta que deixava
lápis e papéis pelo corredor. Foi seu último dia de aula, passou a estudar em
casa com a mãe.
Ah, a mãe. Ela representava para mim, um livro de fábulas,
uma rainha que guardava com todas as chaves uma mina de baús cheios de
diamantes. Talvez porque a apontassem como feiticeira e louca. Ela criava
gatos, dezenas deles. Gatos sem donos,
tortos, caolhos, gatos de rua. Havia os gatos de olhos azuis e pelos marrons,
arrasadores e lindos, que piscavam duplamente e pareciam sorrir. Eu tinha uma
visão parcial, da janela do quarto, pois tinha o privilégio de ser vizinha
deles.
Um dia, minha mãe disse:
- Vá à casa ao lado
e deixe o bolo, mas não entre. Volte da porta. Esta era uma missão que eu não
saberia nomear. Calcei os chinelos e corri até lá. Ninguém nunca entrava na
casa, eles não recebiam visitas. As pessoas no máximo deixavam a caixa com os
gatos na porta, nada mais. Não entreguei o bolo. Assim que a criada abriu a
porta, entrei apressadamente. Passei pela sala, atravessei a cozinha e cheguei
ao quintal. Os gatos estavam lá espalhados na grama. Preguiçosos e gordos:
brancos, pardos, negros, majestosos. Veio-me um sentimento de indagação: Por
que o mundo jogava fora aqueles seres felinos, macios e tão belos ? Eram de uma
mansidão ímpar, como um cobertor de veludo em noite de inverno. A
mulher baixinha e gorda olhava espantada a invasão. Estendeu-me um gato
pequeno, cinza e trêmulo, que parecia fugido da guerra. Acomodei-o na roda da
saia e olhei aquele reino em volta. Era o mito da caverna desvendado mais uma
vez. Não havia a velha bruxa dos gatos de rua e seu filho doido. Não havia o
cheiro podre de fezes, pulgas e vírus no ar. Apenas uma casa grande e antiga,
um quintal enorme, um leve soprar das folhas no jardim e um cheiro adocicado de
ternura e compaixão. O menino estava lá, lia um livro aberto sobre a mesa. Veio até mim e pousou sua mão sobre a
minha. Recebi de sua mão úmida o pequeno papel retorcido de bala. Estivera guardado todo o tempo.
Passamos a manter uma convivência clandestina. Quando a guardiã dos gatos abria o arco duplo dos portões da entrada da casa, abria sem
saber o caminho do paraíso. Era um oásis de fontes cristalinas na aridez dos
meus oito anos. Aprendi pela compaixão um amor que não sabia existir. Aprendi
que os gatos amam incondicionalmente e como dizem isso com os olhos, com o
rabo, com a curva das costas. Que ligam um pequeno motor quando tocam-nos o
rosto, e jogam-se aos nossos pés sem reservas, barriga pra cima, nos dizendo: -
Eu confio.
Aprendi a confiar no
amor com aqueles gatos. Aprendi que nem tudo em que as pessoas acreditam é real e que a
verdade é uma caixa que tem que ser aberta. As histórias ouvidas nas tardes,
com sequilhos e suco de tangerina, transferiram para mim parte do tesouro
daquela família.
Um dia, a vida
mudou-nos para outra cidade e não houve despedidas. Soube que a mulher
continuou a cuidar dos gatos da cidade, mas, para todos, era a Velha dos gatos
e seu filho doido: os estranhos que moravam depois da ponte do rio. Aprendi que há sempre um ser abandonado nas
ruas que tem sede e mais fome do que imaginamos. Nós não imaginamos a dor dos
cães e gatos perdidos, e como seus corações batem descompassados de susto e
medo no escuro da noite. Na verdade, não temos tempo para pensar nisso. Só
seguimos ordinariamente em frente.
luisa ataíde
Nenhum comentário:
Postar um comentário