segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

ELAS






Ela chegou na primavera, e disse que tinha fome. Passou alguns dias aceitando as migalhas que eu estendia na varanda, e depois pediu para dormir em qualquer canto da casa. Pelo estado de magreza e desilusão aparente, deixei que ficasse. Começou a engordar rapidamente. Consultei os oráculos do google e a resposta era sempre a mesma: "Se um gato vira-lata adotar a sua casa, é porque você está precisando dele, mais do que ele de você, e observe se engordar rapidamente ─ é porque está se nutrindo das energias negativas dos cantos da casa. Não se preocupe, ele tem meios práticos de eliminar isso." Rimos.
A incredulidade do meu marido era mais realista e sentenciou: ela está grávida. Bem, os dias passaram e ela florescia em felicidade. Passou a exigir leite fresco após o jantar e acordava muito cedo para o desjejum. Ora, precisamos trabalhar a tolerância, mesmo nas manhãs frias de domingo.
─ Mãe a gatinha, sumiu tem dois dias.
─ Mãe tem alguma coisa esquisita no meu armário.
─ Mãe, vem cá.
O milagre da vida é assim. Quatro lindas mocinhas de olhos assustados passaram a morar numa caixa, no guarda-roupa do filho do meio. O mesmo, que há alguns anos, esmagou com os pés desatentos o pinto cor de rosa, comprado na feira. Carmas te acompanham, dizem.
Atravessados dois meses, após nosso olhar apaixonado diante dos minúsculos passos no tapete da sala, a população felina causa-nos problemas. Problemas que fico tentada a esquecer quando a gatinha olha com seus olhos azuis a borboleta atravessar a sala, ou quando elas descobriram as bolinhas de ping-pong e fizeram uma partida, sem regras de vencedores, com muita alegria. Lembrei de como os antigos resolviam isto, lá na roça: amarravam os gatos num saco e os jogavam no rio, levados pelo cruel destino.
Apesar dos ciúmes da cadela da casa, elas já fazem parte dos nossos dias e ouço alguém dizer:
─ Quando se forem, vamos ter saudade.
Talvez consigamos convencer os amigos a adotá-las, ou irão todas morar na periferia, numa viagem de ida de duas horas, num coletivo fadado a quebrar na estrada. Lá as espera um quintal de terra, com uma casa velha de canino, cujo dono as olhará de longe, sem boas-vindas. Um dia, serão mães solteiras, num mundo movido pela irresponsabilidade masculina e procurarão um lugar seguro para esconder a cria.
Começo a arrumar a árvore de natal e elas pulam entre os enfeites, jogam para o alto o que encontram e penso:
─ O meu amor incondicional, é limitado. Se encanta pelo olhar azul de um filhote de gato, mas não há espaço para ele na minha vida. Se aborrece com o runronar matutino da ninhada e ter de levantar para alimentá-la. Aceita dividir o pão, desde que isso não quebre minha rotina e não me canse.
Assim nós amamos o mundo, com a delicadeza de não sermos incomodados. Sem comprometer espaços e agendas. Fazemos isso com nossos velhos e com os que querem vir para nossas vidas. Negligenciamos a vida plena. Podíamos neste natal nos presentear com um projeto de demolição. Poderíamos nos preparar para demolir a solidariedade de fachada e edificar um olhar mais demorado sobre o outro. Seu infortúnio, seu abandono, sua tristeza. Sua alegria que precisa ser libertada.
Precisamos renovar tudo.

Luísa Ataíde

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