domingo, 23 de maio de 2010

NO CORAÇÃO DE BODHISATTVA GUAN-YIN- CONTO


"Se Buscas a saúde física e psíquica
de forma integral, aprendes a amar.
Irmã Scheila'
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Possivelmente, a melhor fotografia de nossa fragilidade estampa-se nas imagens dos telhados sob luz noturna: folhas secas e pequenos corpos de aves mortas. Nos prédios altos, os outdoors e parabólicas assemelham-se a Samurais petrificados cujas lanças avançam em direção à escuridão do céu. Assustadoramente inertes não protegem as almas que deixam sob os lençóis os corpos adormecidos e voltam às terras outrora habitadas. Contudo, paira sobre o planeta a vigília dos espíritos abnegados que deixam cair sobre os aflitos as pétalas da misericórdia.
Lembro-me da aparente normalidade daquelas manhãs de Fevereiro antes do grande Dilúvio. Quando as primeiras ondas invadiram a sala, discutíamos, na mesa da cozinha, se as aulas começariam naquela quinta-feira pós Carnaval.
– Acho que não tem aula não, mãe, deve começar segunda-feira.
Cruzamos a porta em direção ao elevador e não sentimos os pés já cobertos pela água. Lá fora o trânsito apresentava-se calmo para um dia de semana. Não havia nenhum engarrafamento no trajeto ao colégio e agradeci mentalmente aos céus por não começar o dia com buzinas e freadas bruscas. Quando cruzamos o grande portão da entrada da escola e a moça nos estendeu o ticket do estacionamento, considerei que estávamos atrasados para a primeira aula. Talvez um equívoco do relógio nos últimos dias do horário de verão. A estranheza da moça ao adolescente uniformizado no banco ao meu lado foi completada pela comunicação que as aulas só começariam na segunda-feira. Fiz o retorno do carro e observei o olhar cristalizado de Yuzo. Não houve a partir daí nenhum comentário ao meu monólogo sobre a nova escola e a responsabilidade que isto significava. O menino estava a anos-luz de distância das linhas que corriam o asfalto embora observasse, em silêncio, o traço alongando-se no chão.
A grande tempestade que subitamente arrastou o telhado e destruiu parte da casa só foi percebida algumas semanas depois. O menino já não se dedicava aos livros e as explicações vinham monossilábicas e ásperas. Yuzo não se via parte da realidade cotidiana de estudar, alimentar-se, rir sem motivo. Preso na grande sala escura nutria-se da teia da melancolia que tecia ao seu redor. Do lado de fora estavam a família, a escola, o vento no cabelo. Eu via nitidamente a água avançar em direção aos ombros. Em alguns momentos os olhos pediam socorro, o que demonstrava que buscava uma saída. De onde estávamos seguíamos os procedimentos básicos de salvamento: remédios, terapia e fé. As extensas horas de sono compunham a realidade vegetativa dos seus dezesseis anos. Havia vozes dentro dele, elas gritavam ordens de desilusão e morte. Não havia domínio sobre os pensamentos. A mente inquieta e febril ordenava-lhe que pulasse em direção ao abismo. As vozes ecoavam em sua cabeça e ele acreditava no que ouvia. É real, dizia.
– Não é real, são apenas pensamentos que você não consegue dominar. É sua voz interior que adoeceu. Só isso.
Os meses seguintes nos deram de presente uma ausência que parecia definitiva. Não conseguia imaginá-lo voltando ruidoso e alegre depositando o skate na entrada da porta. Não conseguia ver, da varanda, o cabelo escuro balançando ao vento e a queda seguida da risada sonora. Esses movimentos não pertenciam a Yuzo, mas aos outros meninos da vizinhança. Os veículos escolares paravam, pela manhã, na entrada do prédio. Somavam-se mais mochilas amontoadas no canto do carro. Eram os outros, sempre os outros.
O primeiro diagnóstico que recebemos era uma palavra feminina e grande; interminavelmente grande, eu não ousava repeti-la. Na aridez que o destino sinalizava, percebi um pequeno galho verde que nascia entre as pedras. Os questionamentos incessantes sobre a vida, a alma, a razão porque sofremos, que só deveriam apresentar-se ao menino nos próximos dez anos estavam todos com ele e exigiam resposta. Eu não sabia em que parte do deserto estava o copo de água necessário, então propus que faríamos a busca juntos. Lemos tudo que nos foi possível chegar às mãos. Yoga, Filosofia, Literatura. Ouvimos música, caminhamos pelo parque, fomos muito ao cinema. Líamos e meditávamos o Evangelho do Cristo. Um dia ele me comunicou que descobrira a razão de todos os martírios:
– Eu fiz mal a muita gente. Muitas pessoas sofreram por minha causa.
Eu lhe dei por resposta o silêncio. Não podia confundi-lo com minhas convicções sobre as multiplicidades das existências e que nossas almas trazem a marca indelével dos nossos atos. Ali, havia apenas um adolescente em lágrimas. Aquele era o seu momento de constatação e mudança.
Quase dois anos depois daquela manhã de Fevereiro que seus olhos cristalizaram-se nas linhas do asfalto e ele se desconectou de sua juventude – Yuzo sorri com serenidade. Não existe mais o adolescente de riso alto e pressa. Pais, irmãos e amigos sinceros uniram-se em respeito e colaboração, ele subiu do subterrâneo que afundara. Com suas próprias mãos voltou à luz do sol.
Hoje, Yuzo cultiva a harmonia do bem, o respeito ao corpo e a natureza. Adotou uma alimentação saudável, corre todas as tardes no parque e não precisa de antidepressivos. Voltou aos estudos e quer ser Veterinário. Considera-se adepto aos ensinamentos do Mestre Jesus sem nenhuma denominação religiosa. Na verdade, rejeita denominações religiosas. Ainda faz muitas indagações e não dispensou a Terapia. O caminho pleno, sabe, ainda não foi conquistado. Canta e ri como qualquer rapaz de sua idade. Não, canta todos os dias. Matriculou-se numa escola de canto.


L.A
NOTA: A figura da Virgem Maria é a que mais se aproxima de Bodhisattva Guan-Yin, não somente porque ambas simbolizam – cada qual na sua tradição – a pureza, a coragem, e a fé, mas principalmente porque representam o amor feminino (essencialmente materno), a compaixão e a misericórdia, ou seja, aquela que tudo perdoa. Bodhisattvas (em chinês, pu-ti-sa-to, , ou pu-sa são espíritos perfeitos, como explica Karl Ludvig Reichelt, em Truth and Tradition in Chinese Buddhism.
Kuan-Yin, um dos cinco bodhisattvas mais conhecidos, é o Avalokitesvara Indo-Tibetano, a divindade que atende ao grito da angústia, e se volta para o sofredor. Esta figura, pouco a pouco, vem se destacando mais que outros bodhisattvas para significar o espírito, o misericordioso e bondoso espírito que acende em todas as criaturas o desejo de uma renovação do coração, e que os protege contra toda dor e tristeza. Ela se tornou a Senhora compassiva do oriente.
Conta-se, na tradição popular, que ela foi uma princesa na antiga Índia, a mais bela e piedosa entre todas; não gostava de vestidos luxuosos, nem de pratos finos feitos com carnes de animais, embora tudo isso lhe fosse oferecido como direito. Alimentava-se de verduras, porque não suportava ver animais sendo mortos; vestia-se de panos grossos porque gostava de ser simples; e era a mais piedosa entre as filhas. Mas quando chegou o momento de casar, fugiu do palácio porque queria buscar o seu caminho e se dedicar ao ascetismo, seguir o exemplo de Buda. Ao ser obrigada pelos seus pais a contrair casamento, ajoelhou-se diante do palácio do rei, durante dias e noites, sem nada comer, passando frio e tomando vento e chuva, apenas recitando o “Sutra da Grande Compaixão”. E assim, sua fé venceu todas as barreiras. Quando alcançou o Nirvana, não teve desprendimento suficiente para deixar o mundo, porque a sua compaixão era tão forte e infinita que lhe deu forças para fazer o maior voto que alguém podia desejar realizar: “enquanto houver almas sofredoras sobre a face da Terra, não abandonarei esse mundo, e ajudarei todos a alcançar a libertação”. E assim, ela é oficialmente chamada a “Grande Misericordiosa e Grande Compassiva Bodhisattva Guan-Shi-Yin”. Em chinês, significa literalmente: “Aquela que vê e que ouve o Mundo”). Ela atende todos os apelos. Por mais desesperadas e “perdidas” que as pessoas possam estar, ela é incapaz de abandonar quem quer que seja, budista ou não, pois, na compreensão budista, todos os homens são de natureza búdica (luz que reflete a si mesmo), pouco importa a que religião pertençam; ou seja, seres humanos são budas em potencial. As graças que propiciam a salvação, quer pela Maria Mãe, quer pelo Bodhisattva, nos são oferecidas, de forma aberta e maternal, pacientemente, incondicionalmente e eternamente.
(Ho Ye Chia, Universidade De São Paulo.)

sábado, 15 de maio de 2010

TEMPO CICLÓPICO

Gravura- Gustave Doré
Luiz Martins da Silva
Eternas palavras
tão antigas quanto
imemoriais parábolas
acerca de tudo.
A que venho hoje, senão
bater-lhes, outra vez, o toque
a senha, o código de entrada
símbolos de acesso.
Quanto tempo em lides externas!
Quanta dispersão!
Quanto de temporal tem o século!
Quantas lições tem o pó!
Retornar de novo à câmara dos poemas
tem este sabor de recomeço
e esta sensação de que tudo volta ao mesmo ponto,
até o vento, até as metáforas.
Volto mais velho.
Foram muitos as circunavegações circadianas.
Leste - Oeste. Leste - Oeste. Nunca, ao contrário.
Acho que até repito erros. Tão bom é aprender a aprender.

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