"Se Buscas a saúde física e psíquica
de forma integral, aprendes a amar.
Irmã Scheila'''
Possivelmente, a melhor fotografia de nossa fragilidade estampa-se nas imagens dos telhados sob luz noturna: folhas secas e pequenos corpos de aves mortas. Nos prédios altos, os outdoors e parabólicas assemelham-se a Samurais petrificados cujas lanças avançam em direção à escuridão do céu. Assustadoramente inertes não protegem as almas que deixam sob os lençóis os corpos adormecidos e voltam às terras outrora habitadas. Contudo, paira sobre o planeta a vigília dos espíritos abnegados que deixam cair sobre os aflitos as pétalas da misericórdia.
Lembro-me da aparente normalidade daquelas manhãs de Fevereiro antes do grande Dilúvio. Quando as primeiras ondas invadiram a sala, discutíamos, na mesa da cozinha, se as aulas começariam naquela quinta-feira pós Carnaval.
– Acho que não tem aula não, mãe, deve começar segunda-feira.
Cruzamos a porta em direção ao elevador e não sentimos os pés já cobertos pela água. Lá fora o trânsito apresentava-se calmo para um dia de semana. Não havia nenhum engarrafamento no trajeto ao colégio e agradeci mentalmente aos céus por não começar o dia com buzinas e freadas bruscas. Quando cruzamos o grande portão da entrada da escola e a moça nos estendeu o ticket do estacionamento, considerei que estávamos atrasados para a primeira aula. Talvez um equívoco do relógio nos últimos dias do horário de verão. A estranheza da moça ao adolescente uniformizado no banco ao meu lado foi completada pela comunicação que as aulas só começariam na segunda-feira. Fiz o retorno do carro e observei o olhar cristalizado de Yuzo. Não houve a partir daí nenhum comentário ao meu monólogo sobre a nova escola e a responsabilidade que isto significava. O menino estava a anos-luz de distância das linhas que corriam o asfalto embora observasse, em silêncio, o traço alongando-se no chão.
A grande tempestade que subitamente arrastou o telhado e destruiu parte da casa só foi percebida algumas semanas depois. O menino já não se dedicava aos livros e as explicações vinham monossilábicas e ásperas. Yuzo não se via parte da realidade cotidiana de estudar, alimentar-se, rir sem motivo. Preso na grande sala escura nutria-se da teia da melancolia que tecia ao seu redor. Do lado de fora estavam a família, a escola, o vento no cabelo. Eu via nitidamente a água avançar em direção aos ombros. Em alguns momentos os olhos pediam socorro, o que demonstrava que buscava uma saída. De onde estávamos seguíamos os procedimentos básicos de salvamento: remédios, terapia e fé. As extensas horas de sono compunham a realidade vegetativa dos seus dezesseis anos. Havia vozes dentro dele, elas gritavam ordens de desilusão e morte. Não havia domínio sobre os pensamentos. A mente inquieta e febril ordenava-lhe que pulasse em direção ao abismo. As vozes ecoavam em sua cabeça e ele acreditava no que ouvia. É real, dizia.
– Não é real, são apenas pensamentos que você não consegue dominar. É sua voz interior que adoeceu. Só isso.
Os meses seguintes nos deram de presente uma ausência que parecia definitiva. Não conseguia imaginá-lo voltando ruidoso e alegre depositando o skate na entrada da porta. Não conseguia ver, da varanda, o cabelo escuro balançando ao vento e a queda seguida da risada sonora. Esses movimentos não pertenciam a Yuzo, mas aos outros meninos da vizinhança. Os veículos escolares paravam, pela manhã, na entrada do prédio. Somavam-se mais mochilas amontoadas no canto do carro. Eram os outros, sempre os outros.
O primeiro diagnóstico que recebemos era uma palavra feminina e grande; interminavelmente grande, eu não ousava repeti-la. Na aridez que o destino sinalizava, percebi um pequeno galho verde que nascia entre as pedras. Os questionamentos incessantes sobre a vida, a alma, a razão porque sofremos, que só deveriam apresentar-se ao menino nos próximos dez anos estavam todos com ele e exigiam resposta. Eu não sabia em que parte do deserto estava o copo de água necessário, então propus que faríamos a busca juntos. Lemos tudo que nos foi possível chegar às mãos. Yoga, Filosofia, Literatura. Ouvimos música, caminhamos pelo parque, fomos muito ao cinema. Líamos e meditávamos o Evangelho do Cristo. Um dia ele me comunicou que descobrira a razão de todos os martírios:
– Eu fiz mal a muita gente. Muitas pessoas sofreram por minha causa.
Eu lhe dei por resposta o silêncio. Não podia confundi-lo com minhas convicções sobre as multiplicidades das existências e que nossas almas trazem a marca indelével dos nossos atos. Ali, havia apenas um adolescente em lágrimas. Aquele era o seu momento de constatação e mudança.
Quase dois anos depois daquela manhã de Fevereiro que seus olhos cristalizaram-se nas linhas do asfalto e ele se desconectou de sua juventude – Yuzo sorri com serenidade. Não existe mais o adolescente de riso alto e pressa. Pais, irmãos e amigos sinceros uniram-se em respeito e colaboração, ele subiu do subterrâneo que afundara. Com suas próprias mãos voltou à luz do sol.
Hoje, Yuzo cultiva a harmonia do bem, o respeito ao corpo e a natureza. Adotou uma alimentação saudável, corre todas as tardes no parque e não precisa de antidepressivos. Voltou aos estudos e quer ser Veterinário. Considera-se adepto aos ensinamentos do Mestre Jesus sem nenhuma denominação religiosa. Na verdade, rejeita denominações religiosas. Ainda faz muitas indagações e não dispensou a Terapia. O caminho pleno, sabe, ainda não foi conquistado. Canta e ri como qualquer rapaz de sua idade. Não, canta todos os dias. Matriculou-se numa escola de canto.
L.A
NOTA: A figura da Virgem Maria é a que mais se aproxima de Bodhisattva Guan-Yin, não somente porque ambas simbolizam – cada qual na sua tradição – a pureza, a coragem, e a fé, mas principalmente porque representam o amor feminino (essencialmente materno), a compaixão e a misericórdia, ou seja, aquela que tudo perdoa. Bodhisattvas (em chinês, pu-ti-sa-to, , ou pu-sa são espíritos perfeitos, como explica Karl Ludvig Reichelt, em Truth and Tradition in Chinese Buddhism.
Kuan-Yin, um dos cinco bodhisattvas mais conhecidos, é o Avalokitesvara Indo-Tibetano, a divindade que atende ao grito da angústia, e se volta para o sofredor. Esta figura, pouco a pouco, vem se destacando mais que outros bodhisattvas para significar o espírito, o misericordioso e bondoso espírito que acende em todas as criaturas o desejo de uma renovação do coração, e que os protege contra toda dor e tristeza. Ela se tornou a Senhora compassiva do oriente. (...)
(Ho Ye Chia, Universidade De São Paulo.)